segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Conto à menina morta


...andava a esmo. Passado? Já não existia. Futuro? Já não importava. Pensava enquanto andava. Quilômetros percorrera pelas ruas imundas da cidade escura e pelas estradas desertas da rota trinta e sete. Tinha consigo milhões de dúvidas. Volta e meia, embriagava-se de um trago barato qualquer, comprado num bar qualquer, vendido por um vendedor qualquer. Não importava. Não raras vezes também chapava-se de comprimidos farmacêuticos, os quais a acompanhavam mundo afora. Tomava remédios desde que conheceu-se por gente. Saúde debilitada, mente conturbada. O medíocre psiquiatra não dera conta do recado, só viciou-a desde nova. Quando ainda virgem recebera do padrasto um estupro de vinte e quatro centímetros e quarenta e tantos minutos. Sangrou e chorou. Sentiu nojo e ódio, dor e desespero. E foi este o fantasma que a expulsou de casa e a perseguiu pelos seus dias. Tinha sonhos diurnos, e em seus olhos noturnos, só penetravam olhares tristes. Pensava ser Maria Bonita a procura de Lampião Sertão afora. Queria casar-se de vermelho com um homem bem mais velho, mas no fundo era lésbica. Gostava de sentir-se assim, contraditória. Amava uma atriz de novela e tinha tesão por uma atendente de uma lojinha de bijuterias baratas. Freqüentava bares obscuros, onde entorpecia-se antes de ir dormir. Também era freqüentadora de banheiros em shoppings center’s, pois estes, pensava, ‘eram limpos e bons para cagar’. Aliás, nada melhor do que defecar em paz, não é? Andou, andou e andou. Seus calos a faziam sentir desejo de morte. ‘Um bom motivo para o suicídio’, pensava. Mas a morte, estúpida como tal, não seria suficiente. Se fosse para morrer, queria morrer em batalha. Imaginava uma guerra contra o que chamava ‘Império do Norte’. Ela, é claro, compondo as fileiras do ‘exercito dos povos árabes e simpatizantes’, contra os ‘EUA e aliados ocidentais’. Ai sim valeria a pena morrer, com calos doloridos e tudo mais, já que seu amor impossível só era vista no cinema francês (leve-se em consideração que seu filme predileto era ‘Coisas belas e sujas’). Certo dia cansou. Encontrou um cactos de espinhos finos que fazia uma sombra curta, porém agradável, encostou-se por lá e descansou, até o próximo sol raiar... mas o sol, por sua vez, nunca mais raiou.

Carlito d'el Tango


Não ser...

Da janela do meu quarto

Vejo o mundo lá fora

Não compreendo mais nada

Nem quero compreender

Já foi o bastante

Me bastou ser...


el tango