sábado, 24 de novembro de 2007

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A bolsa firme ao ombro e sob a palma alva era segurada. Era uma bolsa antiga feita de couro e costurada com barbante. Continha documentos importantíssimos. Meu avô a mantinha a sete chaves. Dizia que não podíamos bisbilhotar, pois era ali que ele guardava seus cobres, com os quais nos presenteava seguidamente.
Ao lado de uma encruzilhada meu avô esperava o ônibus. A longa faixa preta de asfalto quente ligava dois horizontes. Cada veículo que surgia no ponto de fuga era a expectativa do transporte se aproximando. Um homem firme com sua bolsa.
Meu avô tinha postura de herói. Era grande e sempre fazia o que queria. Falava como quem sempre sabia o que estava por acontecer. Gostava de bater forte com o pé no chão, para que pudéssemos ouvir ao longe o barulho do taco de sua bota. Quando um de nós agarrava em sua bombacha, ele logo nos erguia e segurava entre seus braços. Cantarolava e embriagado dançava com minha avó. Naquele momento mantinha uma postura séria na encruzilhada por onde havia de seguir de ônibus.
Meu avô era Xirú, e o resto não importava.

(marcio serpa)
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Tinha sido acuado na represália.
Descalço em pé e alma
Seu olhar negro como dia nebuloso
Deixava-o constrangido pela falha.
Encontrava-se preso
(não era a primeira vez).
Cercado por artefatos humanos
E institucionais
Lamentava apenas que o produto
De seu empreendimento furtivo
Havia se perdido em lugar algum.

(marcio serpa)

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Já fui poeta em pesadelo. Já fui cão, garfo e barriga. Também já fui funcionário público e contador, mas isso pouco interessa. A verdade é que nunca tive dom para o que chamam de trabalho. Quando nasci, dois quilos e alguma coisa, mamãe enunciou: “Vejo algo de esplendido no choro dessa criança!”. O médico não entendeu. Papai se assustou mas manteve-se calado. Cresci e descobri minha real vocação. Depois de muito refletir conclui: “Tenho vocação para cavocar abismos”. Morri. Quando renasci, minha vocação original havia sucumbido junto a outra vida que tive. Nesta segunda vida, realmente virei poeta. Até hoje não escrevi nada que merecesse publicação. Talvez não seja um bom poeta aos caprichos da crítica, mas tornei-me um grande ‘desimaculador’, especialista na arte da ‘desimaculação’. As folhas, com suas brancuras peculiares, ao me verem, estremecem. Depois que aprendi a manejar a caneta, não paro de ‘desimacular’. Isso me excita e o faço com um esplendor jamais visto. Minha mãe passada, se vivesse e fosse a mesma nesta vida, teria orgulho de mim... e como teria!
Carlito d'el Tango
Claustrophobia

Mal consigo respirar...
Vós desejais alcançar o topo. Sucesso.
Mas este é um espaço mui restrito
Pilhéria do sistema, não há lugar para todos no cume
Poucos em detrimento de muitos. Mesmo
assim quereis...
Ó insaciável demência!

As palavras vestem máscara de anjo & de
demônio para a batalha.
Ferem como farpa pontiaguda. Vence
o mais impetuoso & eficaz com o machete.
Ele pode fazer até a alma de um drugui sangrar
Com a ultraviolência de
uma panthera negra faminta & traiçoeira
Dilacera a carne e os sonhos no jantar

Como o garoto que brinca na rua poeirenta ao pôr-do-sol,
eu só quero ser puro.
Anseio por um ar que dê fôlego a meu
pulmão desajustado & cancerígeno.
Os puros não choram lágrimas quentes de
solidão...

Emiliano del Arge

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

poesia...


Dentro de mim

Já não chove ...
As janelas estão vazias.

Enquanto aqui permaneço
Não vejo o sol.
Deixem-me dormir!

Sinto meu corpo ausente.
Às vezes a dor me alivia.

Entro no mundo das sombras
Para fechar a porta do tempo.


Liza A. Bueno
Cheguei à conclusão, depois de muito ponderar sobre ela, que não tenho todos os motivos para ser a pessoa (se não digo mais, pelo menos estou entre as dez) mais feliz do oeste do estado. Cultivo quatro amigos, os únicos leitores que podem estar, acredito eu, neste momento, ou em qualquer outro, lendo estas baboseiras. Acabei de perder minha gatinha, uma siamesa chamada Amélie, de pneumonia ou desgosto, a veterinária não conseguiu dar um diagnóstico preciso. Ela conviveu comigo uma semana, a gata, não a veterinária, antes de morrer. Minha namorada me proibiu de beber, minha conta está no vermelho e minha moto está na U.T.I. Tirando estes pequenos inconvenientes, nunca em minha vida estive pior.
Moro em um edifício chamado Bianca. Não sei até hoje porque raios deram este nome. Ele é bege e com as sacadas cor de laranja apodrecendo. Eu estou instalado no apartamento 406, ao lado de não sei quem e na frente de coisa nenhuma. Eles parecem não se importar. Eu menos ainda. Meus amigos, é bom que se fale um pouco deles, me consideram o melhor poeta do bairro. Considero isto uma façanha, em se tratando de uma cidade praticamente imóvel. Meus fiéis seguidores às vezes me deixam só. Como agora, em que estou sozinho na companhia de Janis, “Ball and chain”. Tento inutilmente imitar sua voz, mas sei que para isto precisaria de duas garrafas, pelo menos, de um uísque qualquer.
A veterinária decidiu me presentear com outra gata. A assistente dela veio trazê-la. Não sei qual das duas como primeiro. Acho que pela hierarquia, a assistente. Vou chamá-la de Aime. A gata, não a assistente. Quando toca a campainha eu abro a porta. Ela despacha a mercadoria em meus braços e sai em disparada. Nunca na minha vida hei de entender os gatos. Voltando aos amigos, que distraidamente esqueci algumas linha atrás, só posso defini-los por insanos. Por precaução, usarei nomes fictícios. Não tanto por temer quanto às suas vidas, mas sim pela minha.
Niko e Liza formam o casal mais bonito que eu já vi em minha vida. Estão unidos, antes de tudo, pela música, pela poesia e pela pele. Não sei se por esta ordem direta. Mas por alguma ordem, disto tenho certeza. Às vezes vejo Niko perambulando por alguma rua de Tihuana, iluminado por um sol só dele, roupas de algodão e a mente cheia de idéias. Vejo Liza, vejo os sonhos despencando dos seus cabelos, para baterem no asfalto incendiado por um sol onírico. Vejo Werther declamando Augusto pelas madrugadas insones tocado por leve chuva. Vejo Amélie no céu dos gatos. Vejo-me refletido no fundo do vaso, antes do meu vômito transformar tudo em ondas incompreensíveis.
Diógenes Gluzezak

Bêbado que não sabe se dormir é morrer

Torpe demais não há caminhos. Verdadeiro e puro não posso existir. Transmutado enlatado soturno. Vivedor que arde em sal sem sabor. Suor sagrado que sangra sem vinho. Medo amargo do que será um dia. Blasfêmia da grossa! Pudor, não há! Só o pau a puta a dor o passar bem... Passar bem, meu amor! Quem apostou no cavalo meia quatro? Ele perdeu. Mais um fracasso. Outro para a coleção de fracassos. Eternamente chega o fim. Lúcido demais não há vestígios. Coisa alguma. Não é nada a não ser o pouco que restou. E, não restou muita coisa. Restou nada! Beijos, preciso dormir, curar o porre e se for, acordar, depois, nunca mais...
Herman G. Silvani (Niko)