sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

...rumo a 2008

Festa de Ano Novo

Dias e mais dias perdidos, furtados...
Alegres dias novos mentidos...
Confraternizações hipocondríacas,
Festas de sorrisos cáusticos.
Um alicerce tão sólido...
Cadelas balançando seus rabos para cães
adestrados, perpetuando a farsa.
A frágil e linda primavera calçando botas!

Marciano Jr. Maraschin

sábado, 24 de novembro de 2007

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A bolsa firme ao ombro e sob a palma alva era segurada. Era uma bolsa antiga feita de couro e costurada com barbante. Continha documentos importantíssimos. Meu avô a mantinha a sete chaves. Dizia que não podíamos bisbilhotar, pois era ali que ele guardava seus cobres, com os quais nos presenteava seguidamente.
Ao lado de uma encruzilhada meu avô esperava o ônibus. A longa faixa preta de asfalto quente ligava dois horizontes. Cada veículo que surgia no ponto de fuga era a expectativa do transporte se aproximando. Um homem firme com sua bolsa.
Meu avô tinha postura de herói. Era grande e sempre fazia o que queria. Falava como quem sempre sabia o que estava por acontecer. Gostava de bater forte com o pé no chão, para que pudéssemos ouvir ao longe o barulho do taco de sua bota. Quando um de nós agarrava em sua bombacha, ele logo nos erguia e segurava entre seus braços. Cantarolava e embriagado dançava com minha avó. Naquele momento mantinha uma postura séria na encruzilhada por onde havia de seguir de ônibus.
Meu avô era Xirú, e o resto não importava.

(marcio serpa)
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Tinha sido acuado na represália.
Descalço em pé e alma
Seu olhar negro como dia nebuloso
Deixava-o constrangido pela falha.
Encontrava-se preso
(não era a primeira vez).
Cercado por artefatos humanos
E institucionais
Lamentava apenas que o produto
De seu empreendimento furtivo
Havia se perdido em lugar algum.

(marcio serpa)

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Já fui poeta em pesadelo. Já fui cão, garfo e barriga. Também já fui funcionário público e contador, mas isso pouco interessa. A verdade é que nunca tive dom para o que chamam de trabalho. Quando nasci, dois quilos e alguma coisa, mamãe enunciou: “Vejo algo de esplendido no choro dessa criança!”. O médico não entendeu. Papai se assustou mas manteve-se calado. Cresci e descobri minha real vocação. Depois de muito refletir conclui: “Tenho vocação para cavocar abismos”. Morri. Quando renasci, minha vocação original havia sucumbido junto a outra vida que tive. Nesta segunda vida, realmente virei poeta. Até hoje não escrevi nada que merecesse publicação. Talvez não seja um bom poeta aos caprichos da crítica, mas tornei-me um grande ‘desimaculador’, especialista na arte da ‘desimaculação’. As folhas, com suas brancuras peculiares, ao me verem, estremecem. Depois que aprendi a manejar a caneta, não paro de ‘desimacular’. Isso me excita e o faço com um esplendor jamais visto. Minha mãe passada, se vivesse e fosse a mesma nesta vida, teria orgulho de mim... e como teria!
Carlito d'el Tango
Claustrophobia

Mal consigo respirar...
Vós desejais alcançar o topo. Sucesso.
Mas este é um espaço mui restrito
Pilhéria do sistema, não há lugar para todos no cume
Poucos em detrimento de muitos. Mesmo
assim quereis...
Ó insaciável demência!

As palavras vestem máscara de anjo & de
demônio para a batalha.
Ferem como farpa pontiaguda. Vence
o mais impetuoso & eficaz com o machete.
Ele pode fazer até a alma de um drugui sangrar
Com a ultraviolência de
uma panthera negra faminta & traiçoeira
Dilacera a carne e os sonhos no jantar

Como o garoto que brinca na rua poeirenta ao pôr-do-sol,
eu só quero ser puro.
Anseio por um ar que dê fôlego a meu
pulmão desajustado & cancerígeno.
Os puros não choram lágrimas quentes de
solidão...

Emiliano del Arge

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

poesia...


Dentro de mim

Já não chove ...
As janelas estão vazias.

Enquanto aqui permaneço
Não vejo o sol.
Deixem-me dormir!

Sinto meu corpo ausente.
Às vezes a dor me alivia.

Entro no mundo das sombras
Para fechar a porta do tempo.


Liza A. Bueno
Cheguei à conclusão, depois de muito ponderar sobre ela, que não tenho todos os motivos para ser a pessoa (se não digo mais, pelo menos estou entre as dez) mais feliz do oeste do estado. Cultivo quatro amigos, os únicos leitores que podem estar, acredito eu, neste momento, ou em qualquer outro, lendo estas baboseiras. Acabei de perder minha gatinha, uma siamesa chamada Amélie, de pneumonia ou desgosto, a veterinária não conseguiu dar um diagnóstico preciso. Ela conviveu comigo uma semana, a gata, não a veterinária, antes de morrer. Minha namorada me proibiu de beber, minha conta está no vermelho e minha moto está na U.T.I. Tirando estes pequenos inconvenientes, nunca em minha vida estive pior.
Moro em um edifício chamado Bianca. Não sei até hoje porque raios deram este nome. Ele é bege e com as sacadas cor de laranja apodrecendo. Eu estou instalado no apartamento 406, ao lado de não sei quem e na frente de coisa nenhuma. Eles parecem não se importar. Eu menos ainda. Meus amigos, é bom que se fale um pouco deles, me consideram o melhor poeta do bairro. Considero isto uma façanha, em se tratando de uma cidade praticamente imóvel. Meus fiéis seguidores às vezes me deixam só. Como agora, em que estou sozinho na companhia de Janis, “Ball and chain”. Tento inutilmente imitar sua voz, mas sei que para isto precisaria de duas garrafas, pelo menos, de um uísque qualquer.
A veterinária decidiu me presentear com outra gata. A assistente dela veio trazê-la. Não sei qual das duas como primeiro. Acho que pela hierarquia, a assistente. Vou chamá-la de Aime. A gata, não a assistente. Quando toca a campainha eu abro a porta. Ela despacha a mercadoria em meus braços e sai em disparada. Nunca na minha vida hei de entender os gatos. Voltando aos amigos, que distraidamente esqueci algumas linha atrás, só posso defini-los por insanos. Por precaução, usarei nomes fictícios. Não tanto por temer quanto às suas vidas, mas sim pela minha.
Niko e Liza formam o casal mais bonito que eu já vi em minha vida. Estão unidos, antes de tudo, pela música, pela poesia e pela pele. Não sei se por esta ordem direta. Mas por alguma ordem, disto tenho certeza. Às vezes vejo Niko perambulando por alguma rua de Tihuana, iluminado por um sol só dele, roupas de algodão e a mente cheia de idéias. Vejo Liza, vejo os sonhos despencando dos seus cabelos, para baterem no asfalto incendiado por um sol onírico. Vejo Werther declamando Augusto pelas madrugadas insones tocado por leve chuva. Vejo Amélie no céu dos gatos. Vejo-me refletido no fundo do vaso, antes do meu vômito transformar tudo em ondas incompreensíveis.
Diógenes Gluzezak

Bêbado que não sabe se dormir é morrer

Torpe demais não há caminhos. Verdadeiro e puro não posso existir. Transmutado enlatado soturno. Vivedor que arde em sal sem sabor. Suor sagrado que sangra sem vinho. Medo amargo do que será um dia. Blasfêmia da grossa! Pudor, não há! Só o pau a puta a dor o passar bem... Passar bem, meu amor! Quem apostou no cavalo meia quatro? Ele perdeu. Mais um fracasso. Outro para a coleção de fracassos. Eternamente chega o fim. Lúcido demais não há vestígios. Coisa alguma. Não é nada a não ser o pouco que restou. E, não restou muita coisa. Restou nada! Beijos, preciso dormir, curar o porre e se for, acordar, depois, nunca mais...
Herman G. Silvani (Niko)

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

poesia...


Num rancho de chão batido
O velho, moribundo e isolado
Descansa seu corpo já decadente
Mate amargo levado a boca
Espera a morte para um último trago


Carlito d'el Tango
Sobre dois tipos de dores

“Na escala das criaturas, só o homem pode inspirar um nojo constante” (E.M.Cioran)

As pequenas dores que sentimos na carne, como nos atormentam! Vivemos a reclamar dessas dores com todos aqueles que encontramos pela frente, faça chuva ou faça sol.
Reclamamos tanto que chega até parecer que somos os únicos sofredores autênticos do planeta, e a ninguém mais é dada esta “Benção” divina ou infernal.
Mas essas dores são passageiras, senhoras e senhores dolorosos. Basta um ou dois comprimidinhos, uma ou duas aspirinas, algumas gotinhas milagrosas de um tônico qualquer e o mundo deixa de ser um peso, e a vida perde aquele gosto amargo que tanto a torna insuportável, e o sonhar com a navalha dissipa-se com o vento morno da madrugada.
Como vêem, não somos os “Bem-afortunados” que pensamos ser. Junto a nós está uma multidão incontável de doloríveis e queixosos de Platão, que atormentam-se no suicídio.
Mas o que são essas cócegas que insistimos em chamar de dor, perto das grandes atribulações do espírito, daquela ferida infinda na alma que torna os dias pesados como chumbo e faz com que qualquer luz se transforme em algo oprimente e torturante?
Nada vezes nada.
Quantos de vocês, das dores simples, já olharam para a vida e chegaram à conclusão de que tudo é vão?
Quantos de vocês têm a consciência da agonia do mundo? Quantos de vocês conhecem realmente esta morada onde sufocamos? A dor que acreditam ser imensa lhes de fazer uso da metafísica. A “Dor” que sentem está muito próxima das farmácias. É uma dor de fanfarrões.
Mas há nas farmácias algo específico contra a dor vazia da existência?

A . D. Gluzezak

O sonho com Che


Você pode não acreditar, mas vou contar assim mesmo. Eu troquei uma idéia com Che Guevara! Vá lá que foi num sonho, mas isso é mero detalhe. Ernesto e eu conversamos no Universo paralelo do sono, em meio a cordeirinhos e monstros do escuro. Perto de um campo de cogumelos vermelhos socialistas, nós sentamos e proseamos por um tempo. Não tô nem aí se você não bota fé, mas ele tava lá, com o charuto, a boina na cabeça e tudo mais:

-E dae barbudo, tudo certo aí no outro mundo?
- Si, si... tudo tranquilo. Acabamos de hacer una revolucion para Ele liberar los charutos e la tequila. Agora está melhor.
- Mas você tá no andar de cima ou no de baixo?
- (Após um longo silêncio...) Não hablemos disto amigo. Quiero saber como vão as coisas em la Terra querida.
- Bom, o capitalismo ainda reina absoluto por aquelas bandas.
- Diablos!!
- Por isso não preciso nem dizer que a desigualdade social e a diferença entre as classes só aumentou.
- Pero, e la revolucion? E la esquerda?
- Xi Che, se eu contar você não acredita. Aqui no Brasil, a esquerda está no poder...
- (Interrompendo bruscamente) Viva! Las coisas começaram a mudar!
- Mas não se anime muito não. Tem até um ex-presidente do Bank Boston chefiando o Banco Central brasileiro.
- Pero então abriram las pernas?
- Pois é, continuamos com o mesmo neoliberalismo do governo anterior.
- E lo povo? Não discorda, não protesta?
- O povo está domesticado. A grande imprensa acha que o governo está sendo “sensato” e fazendo tudo certo, pois, segundo os algozes jornalísticos não haveria outra alternativa. Obvio não é?
- Los interesses amigo. Sempre los interesses...
- Mas nem tudo é má notícia! Sua foto está estampada nas camisetas! Está na moda usar uma camiseta do Che Guevara. Meninos, meninas, todo mundo usa!
- Pero então la revolucion ainda és possible! Vamos à luta companheiro! (puxa o megafone e a espingarda...) Abaixo lo capitalismo! Abaixo lo capitalismo!
- Calma , calma. O problema é que quem criou essa moda foram umas grifes de roupas famosas. Então quem usa é quem tem dinheiro, sabe?
- Hã!?
- Não estão muito preocupados com a ideologia que elas representam, mas com a imagem que a camiseta lhes dá.
- Está en la moda parecer rebelde?
- É. Mas daí para tomar alguma atitude...
- (irritado) Pero quanto custam las camisetas?
- Olha, alguns pagam até meio salário minímo por elas.
- (gritando) Hija de la puta! Los capitalistas estão ganhando mais dinheiro com mi foto!! Yo virei ícone capitalista!
- Pra você ver...
- (baforando o charuto, pensativo) Prefiro la muerte!

Emiliano Del Arge.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Xapecó, parabéns - paramaus - paraporaí...



Vendaval...

...ventos insurgentes chegaram a meia noite enquanto os casais em suas celas aprisionados sonhavam com o verde do dólar, sonho americano e ignóbil, diga-se de passagem. Voltando aos ventos... eles, os ventos, nos chegaram com tanta força que nem a estrutura mais bem estruturada de nossa pacata, porém, promíscua cidade, manteve-se em pé; e a estrutura mais bem estruturada que se desestruturou com os ventos sulinos, foi a estrutura do historicamente hediondo monumento central. Levantado de lata e alguns muitos parafusos, o desbravador simboliza o poder dos imigrantes colonizadores que subjugaram caboclos e indígenas que aqui, antes eram maioria. Mas o que isso importa agora não é? (se perguntam os tolos que abnegam a história). É certo, assim como caboclos e indígenas, os colonos imigrantes também tem seu valor, tal como os cães, os pássaros, as flores... Mas que valor tem os colonizadores? Têm também, tal como os frangos, os bovinos e os porcos – não necessariamente nesta ordem. Bom, deixa pra lá! Voltando outra vez aos ventos varredores, que, diga-se novamente de passagem, varreram além do desbravador, a igreja (com o padre junto), a prefeitura (com o prefeito junto), o comércio (com os capitalistas junto) e, como complementaria um bom anarquista, o resto do lixo que se amontoava pelas ruas imundas desta cidade. * Obs.: Não é meu este complemento, pois não sou heu um bom anarquista. Pois bem, hoje, apesar do caos aparente, a cidade acordou mais calma, os ventos fortes foram-se e ficou pelas ruas um ar de pureza, de renovação; um ar de novidade ainda não compreendido pelos sobreviventes que, se tudo correr bem, não serão linchados nem tampouco queimados em praça pública.

...em memória de...

el tango

Sobre rosas e arbustos...

Moro nesta pequena, esfumaçada e hedionda cidade há alguns anos. Para quem necessitar de meus serviços, resido à avenida Getúlio Vargas, num prédio chamado Bianca, que ao contrário do portentoso nome que ostenta, não possui esplendor. Desde que aqui cheguei ouço falar numa tal “cidade das rosas”. Como a única cidade que existe por perto é esta de onde vos falo, depois de uma longa e analítica dedução, deduzi que a “tal” não podia de forma alguma ser outra que não esta mesma. Xapecó, chama-se ela. Às margens plácidas do rio Uruguai, cercada de todos os lados por abatedouros e montanhas, a “capital do oeste”, ei-la austera e soberana.
Aqui chegando, não contei quantos degraus têm a igreja matriz, visto que nunca tive vocação para ovelha, tampouco atinei com aquela monstruosidade de ferro, lata, zinco ou sei lá qual mineral, postada no meio da avenida. Só depois fiquei sabendo que atendia pelo heróico nome de “desbravador”. Procurei nele alguma semelhança, por mínima que fosse, com um índio. Perdi uma hora ali e não encontrei a dita.
Mas voltando ao que nem comecei, por mais que me esforce, até hoje não consigo atinar direito do porque chamar esta de cidade das rosas, que convenhamos, se não é original, não deixa de ser uma perfumada homenagem! Penso cá com meus botões (que se já caíram, pelo menos sei que estão em algum lugar) que, ou as rosas estão muito bem protegidas por nosso sempre atento e eficiente aparato militar em algum abrigo subterrâneo a prova de olhares curiosos, ou simplesmente não existem, assim como deus, papai noel, os smurfs, o mestre dos magos e o vingador, que tanto atribularam meus sonhos de infância.
Agora, se rosas não há, arbustos não hão de faltar! Em cada terreno baldio, centenas deles. Ao redor de prédios abandonados, no meio da calçada ou dos canteiros, farto banquete para os cavalos extenuados dos catadores de papel. Não sei-lhes os nomes característicos, muito menos os científicos, pois não me interessam demasiado para que eu curse biologia, especialmente botânica, mas como proliferam! Realmente um espetáculo de encher os olhos. decididamente não podemos nos queixar da falta de verde, já que as rosas, estas sim, desapareceram.
Sou obrigado a confessar minha ignorância. Há um mistério indecifrável, como indecifrável continua para mim aquela estátua gelada e assustadora e o incêndio que todos querem esquecer. Talvez encontre a resposta conversando com historiadores, mas como há só um que realmente considero, sem querer com isso, que fique bem claro, desprezar os outros, espero sua indulgente resposta à minha ingênua pergunta. Mas até que isso aconteça, continuo com meu faro em alerta, tal qual cão perdigueiro, à espreita do mais suave odor que possa revelar a existência da quem sabe última rosa.
Xapecó, primavera...

Coiote

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Um poeminho...


No ápice do risco, ele sempre insiste.
- Venham até a margem!
E resistem...
Como quem segura um lápis com um só dedo.
- Venham! Não tenham medo de cortar-se no branco, ele insistiu.
Os lápis já possuem pontas.
E a cada apontador, um corte.
Fizeram-se dois traços. Ou seriam garatujas?
Ele os empurrou...
Ambos rascunharam o desejo.


Helen Bressanelli

http://menina.tremula.zip.net/




Conto...



Noite Embriagada


...luz baixa. Fumaça. Uma taça lacrimejante com resíduos arroxeados no fundo. Uma garrafa com menos da metade do dionisíaco líquido embriagador. Uma pequena mesa em madeira. Uma cadeira envelhecida. Eu. Em volta da medonha luz, mariposas noturnas divagam, fazendo companhia aos meus devaneios. Lá fora, os grilos e tudo o resto que compõe uma noite fria de outono. Uma garoa suave começa e logo termina. Retorna. Termina outra vez, e assim consecutivamente pelo resto da noite. Ouço tudo. Volto a encher a taça. Meu último charuto libera sua ultima fumaça. Há cinzas pelo chão. Minha respiração ofegante se ouviria em alto tom se existissem ouvidos alheios em volta. Eu ouço. Meus olhos pesam. Já não há mais cheiro no ar. A pouca luz começa a enfraquecer, logo, logo, ela sucumbirá dentro da escuridão. Levanto. Rodopio. Volto a sentar-me. Com os olhos semi-serrados, cochilo por um breve instante. Reacendo como brasa, sutilmente. Pego a garrafa e despejo a última gota do vinho já azedo em minha boca. A língua contorna os lábios para um último beijo no sabor que ainda resta. É o fim. Tonto e mudo, já não tenho mais canção para cantar; já não tenho mais energia para manter-me sentado. E o tombo se faz. Caio junto a cadeira que também despenca, fazendo coreografia com o corpo. Ainda não sei. Deixo a obscuridade da noite me envolver. Cubro-me com seu negro e aconchegante véu. Sinto a calmaria. Será o sono? Será a morte? Talvez. Talvez ainda seja só um sonho daqueles que se sonha uma única vez na vida. Mas ainda não sei, pois, por enquanto, não sou mais do quê sempre fui... alguém.

Carlito d’el Tango

quarta-feira, 18 de julho de 2007

...

O outono
Fantasiado com
O furor gélido
Cobriu-me espectralmente
Como as folhas mortas
Cobrem o chão.

Marcio

Conto...

Diógenes.

VELANDO TEU SONO... TRÊMULO
de onde estou posso ver seus contornos indefinidos na penumbra. encolhida no sofá como um trapo sujo ou um gatinho que sonha, ela respira com certa dificuldade. muito cigarro. muita vodca. muita falta de. eu a encontrei no bar. bem, eu estava por por ali, bebendo uma cerveja no balcão envolto por um manto espesso de fumaça de frituras & cigarros & pequenos incêndios que eu não conseguia definir muito bem naquela hora morta da madrugada. pensava numa frase de Camus "o único problema filosófico realmente sério é o suicídio" & em seios fartos & bocas besuntadas de vermelho & uisque decente & na minha mãe & no Maradona, tudo ao mesmo tempo. foi quando ela sentou do meu lado e pediu um rabo-de-galo. enquanto emborcava todo o troço tive tempo de olhar melhor. sua cara me lembrou um campo devastado por napalm no sudoeste do Camboja em 1973. eu nunca havia estado no Camboja, muito menos no sudoeste. mas se tivesse ali um campo devastado por napalm, o ratrato dele estava arrotando ao vivo e a cores bem na minha frente. voltei a me concentrar na cerveja. ela pediu outro trago e repeti o movimento olhando agora para o resto do corpo. nada mal, o corpo. quando terminou de beber, virou-se para mim e falou. sangue de la Madona! sua boca tinha o cheiro de três mil fetos abortados na décima quarta semana. prendi a respiração e aguentei com pude.
- você é João Fantini? - tentei me concentrar em seu vestido verde com lantejoulas penduradas & no relicário com a imagem da Madre Paulina, lembrança de Nova Trento, balançando oprimido bem no meio daquelas tetas murchas.
- não sou eu, não. - soltei o ar. puxei de novo.
- ora, corta essa, seu idiota! sei que é você.
- é, acho que tem razão. - respondi - voltando a respirar novamente.
- continua escrevendo aquele lixo? - ela perguntou.
- não. agora luto boxe. - eu já estava me acostumando com o cheiro, naquele momento.
- aquilo é pura merda. você não sabe escrever, garoto.
- tem gente que gosta. - ela então jogou a cabeça demente para trás e soltou uma gargalhada medonha de modo que pude contar os dezoito dentes que teimavam em permanecer naquela boca de tumba de faraó. depois acendeu um cigarro, pigarreou e disse:
- ouça isto: " choros são ninharias tão pequenas/suspiros coisas tão reles/mas é de tais ocupações/que morrem homens e mulheres!". conhece?
- é Emily Dickinson. - falei.
- isso é poesia. isso é literatura. não aquela droga que você publica no site.
- é um blog.
- e que diferença isso faz? - não respondi. minha vontade era a de arrancar o resto daqueles dentes para que o ar pudesse circular por ali com mais liberdade, mas me contive.
- quer uma bebida. - perguntei.
- vamos dar o fora daqui. vamos para a tua casa.
- eu moro em apartamento.
- ah, porra!

PARTE DOIS
ela continua dormindo. exausta. depois de termos bebido um litro de vodca sua cara não me pareceu tão ruim assim, e fomos para a cama. mas no meio da foda desisti. ela ficava recitando poemas da Emily Dickinson e da Sylvia Plath no meu ouvido e dizendo o quanto elas eram melhores do que eu. eu mandei as três para as putas que as pariu e sai de cima (ou de baixo, ou do meio, não me lembro mais). fui buscar uma cerveja e quando voltei ela estava ferrada no sono. montei uma cadeira e sentei no escuro, mamando a cerveja. e aqui estou agora, bem no centro dsta pequena, suja e hedionda cidade pensando em como vou me livrar da crítica literária amante da Emily, da Sylvia e das irmãs Brontë. e eu nem sei o nome dela! o que Bukowski faria no meu lugar? e Cioran? "a dignidade do amor consiste no afeto desiludido que sobrevive a um instante de baba". ai, meu deus, eu só queria escrever! de vez em quando dormir e sonhar com plácidos gramados cheios de coelhinhas mimosas que me dizem "deslize" me fazendo cócegas com suas tetinhas irreais. mas estou aqui, bebendo com minha insônia as agruras de um amanhecer nevoento que aos poucos vai entrando pelos buracos da cortina me dizendo que não importa o que eu faça, é inevitável o abismo...

Coiote Martinez

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Buenas Noches!

Finalmente 'folhamos' a página e já estamos (ou ainda estamos, como preferirem), na segunda página de nosso querido porém maldito blog. Portanto, quando desejarem ver outras escritas, é lá em baixo no fim da página que encontrarão: 'Postagens Antigas', e é lá que estão as linhas anteriores. O e-mail deste é: poesiavertigem@gmail.com ... Isso! Beijos, abraços y hasta mas!

Pergunte ao pó da estrada

Quanto ao pó?!
Já não sei.
Há dias não pego a estrada.
Estou aqui,
Trancado neste quarto sujo
Deste hotel barato.
O uísque está acabando,
Resta pouco menos de meia garrafa.
A caneta falha
E o papel já está quase que inteiramente rasurado.
Estou só.
Dane-se também!
Para piorar, um belo complemento:
Minha inspiração foi-se embora.
(Espero que nunca mais volte).
Restam-me o punhal e alguns poucos pensamentos divagantes.
Nada mais.
O mundo todo segue em disparada
Numa velocidade incalculável, e eu,
Errante como sempre (fui), estou parado na contra-mão.
Será meu fim...
Ou não.
Não sei.
Enfim...
Aguardarei o próximo instante.
Daqui a um segundo, o presente já não existirá mais,
E disso,
Tenho plena certeza.

Herman G. Silvani (Niko)

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Conto...

PARA PROVAR QUE TODOS, PROVOCAÇÕES À PARTE, ESTAMOS DE FATO LIQUIDADOS.

Bem, foi mais ou menos assim que aconteceu: eu tinha dezoito anos e nenhum juízo. Na minha cabeça, além de correntes de ar, vagavam imagens de louras putonas e exuberantes com tetas grandes e apenas uma idéia fixa: ser escritor. Revelei isso para um amigo certa vez.
- Vou ser escritor. - Nós bebíamos um uísque mata-ratos do gargalo no alto de uma escada estúpida encravada num morro de uma cidade fria e imóvel do sudoeste do Paraná. Tinha uns trezentos degraus, a escada, e era toda de pedra. proporcionáva-nos uma bonita visão de boa parte da city quando não havia nenhuma cerração. Naquela noite ela estava lá, a maldita cerração, e não havia nada que pudessemos fazer quanto a isso. Fernando mijava cambaleando à beira do precipício. Era um bom camarada, Fernando, mas sentimental demais. Havia lido alguns filósofos da linguagem e enlouquecido. Mas eu não me importava. Quem neste maldito mundo não havia lido algum filósofo da linguagem e enlouquecido? Ambos estávamos ali por apenas um motivo: mulheres. Ou a falta de. Ele descorneado porque a puta, era assim que se referia à ex, o havia trocado por um açougueiro que além de tudo era poeta.. Eu, por simplesmente desconhecer na época a revista MULHER: Teoria e prática, do grande Efraim Medina Reyes.
Acho que foi esta declaraçao: "vou ser escritor", que fez Fernando perder o equilibrio. Talvez a lembrança do açougueiro-poeta trepando com sua namorada toda lambuzada de sangue em cima de vitelas e paletas congeladas tenha precipitado a queda. Estes espaços em branco, vocês sabem, pertencem a Deus. Bom, o resto dá para adivinhar.
Fernando ficou três semanas no hospital. Ele sofreu algumas fraturas nos braços, pernas e em outros membros que não lembro o nome. Mas nada que o fizesse esquecer. Sugeri a ele, depois que voltassea andar, passar longe de açougues e da sessão de congelados nos supermercados, pelo menos até que as coisas esfriassem. Ele me jurou, depois que voltou a falar, que iria se matar com uma faca de cortar carne para que ela nunca mais esquecesse do que fez. Eu disse para deixar pra lá, que outros açougueiros viriam. Me mandou tomar no cu e quis partir para a briga. Mas seus ossos doiam e seus olhos e seus cabelos, então desistiu.
Tempos depois, Fernando cumpriu a promessa. Mas usou uma faca GINSU. O açougueiro lançou seu primeiro livro de versos "Das tripas ao coração", que foi bem recebido pela crítica e chutou a ex. Eu estava sozinho e a convidei para passar um fim de semana comigo, para esquecer. Ficou seis meses. Não lembro de outra época em que fui mais infeliz.

Parte dois

- Agora ele cai!
Girei para a direita, mandei o direto. Caprichei bastante. Eu era bastante caprichoso naquela época. E tinha tanta certeza! Aquele filho-da-puta não aguentaria mais um round.
Meu treinador gritou lá do corner:
- Ele vai cair! Ele vai cair!
Dei uma dançadinha na frente dele. Só por onda. Eu tinha um bom jogo de pernas, era ágil e leve como um guepardo. E estava inteiro. A multidão estava de pé, enlouquecida. Gritava por mais, exigia mais. Queriam o coração do desgraçado numa bandeja de prata. Eu, concentrado, olhos profundos e atentos, esperava o momento de fechar a luta. Iria ser carregado nos braços, todos querendo tocar os bíceps santos que derrubaram o campeão. Um dom de Deus, sem dúvida alguma. Nunca mais pagar a conta em restaurantes. Mesa exclusiva, mulheres exclusivas em quartos exclusivos dos grandes hotéis do mundo. João Fantini, além de grande escritor, campeão mundial de boxe.
Dei mais uma dançadinha. Ele estava morto. Ameacei com a esquerda, um jab, e soltei um poderoso upercut. Forte. Impávido. Vigoroso. Oh, Deus!Deus! Deus! Era a glória.
Ele se esquivou. Gingou o corpo e encontrou uma brecha. Soltou o braço. Que lutador! Como eu poderia prever aquilo? Me atingiu acima do olho direito. Depois um gancho na ponta do queixo. Ai, ai. Uma explsão pontiaguda como lascas de metal irrompeu pelo meu cérebro adentro. Dor. Dor. Muita dor. Escuridão. Zumbido nos ouvidos. E na falta de coisa melhor para fazer, eu sangrei. Depois beijei a lona, velha conhecida. Os cinco bêbados que assistiam a luta vaiavam. Fossem para o inferno. Treze lutas. Treze derrotas. Todas por nocaute. Um recorde a ser batido, sem dúvida.
Acordei algum tempo depois, numa ruela imunda ao lado do ginásio. Não conseguia ver direito, os dois olhos inchados. Meu treinador me abandonara ali para sangrar até a morte. Pela décima terceira vez. Ele voltaria, eu tinha certeza. Na minha camisa empapada de sangue um papel pendurado. Com dificuldade consegui ler: "PESO MOSCA-MORTA". Saí atrás de um bar. Precisava de um trago. Bem, já era um começo.

Continua...

sexta-feira, 22 de junho de 2007

(S) Em tempo

Incontáveis e inocentes horas de espera
fila indiana para rotineira burocracia
relógio-ponto não dignifica; condiciona e policia
Incolor, outro entre tantos dias se encerra

No templo de mil mentiras pedia perdão pela libido
anestesia via controle-remoto inoculada lentamente
frêmito de angústia, último suspiro impaciente
- Fui enganado! usurpado! iludido...

O sangue gélido acusa a hora de morrer
pior é a certeza de não ter podido viver
Finalmente querendo gritar, despedia-se mudo

Enfim...
a morte é o fim
Eis tudo.

(Zé.)

Um verso...


Livre para fracassar...

O escritor e seus múltiplos vem vos dizer adeus.
Tentou na palavra o extremo tudo
e esboçou-se santo, prostituto e corifeu.
A infância foi velada:obscura na teia da poesia e da loucura.
A juventude apenas uma lauda de lascivia, de frêmito,
tempo-nada na página.
Depois, transgressor metalescente de percursos
colou-se à compaixão, abismos e a sua própria sombra.
Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar.
A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no lixo.
o desassossego é apenas resíduo de um desencanto.
E hoje, repetindo Bataille:
"Sinto-me livre para fracassar".

Coiote Martinez

quarta-feira, 20 de junho de 2007

EDITORIAL:

Saudações visitantes e leitores (as)!

Somos um pequeno grupo de amigos e escritores xapecoenses que, mal ou bem, escrevem, e isso é fato. Resolvemos, depois de conversas regadas a vinho e boa música, fundar este espaço para postar algumas de nossas linhas malditas e/ou mau-ditas. Queremos com isso, nada mais do que propagar nossas escritas (contos, crônicas, ensaios e poesias), e fazer valer a nossa vontade de livre expressão. Serão postados aqui também, escritas de outros (as) que tenham um mínimo de coerência e afinidade com nossa 'causa', que além de maldita, é nobre (porque não). É bom que se diga: não pertencemos ao quadro da ACHE (Associação Chapecoense de Escritores), nem tampouco a 'grupelhos literários oficializados' que não fazem mais do que gabarem-se frente a decadência de suas condições. Gostando ou não do que lerem aqui, comentem, entrem em contato, façam a comunicação fluir - só 'não nos venham encher o saco' quando por 'des-ventura' pequenos erros de português forem encontrados aqui, pois não somos mestres em gramática e isso não é um livro impresso - Sendo assim, sejam bem vindos ao 'subterrâneo' da literatua xapecoense! Sem mais delongas...

Boa Viagem!

Poesias...


ESCREVO LUA

Se as lágrimas e minh'alma
Cantam neste imenso vazio
É porque aboli todas as mentiras
E não sou mais que este instante
No ato de escrever lua.


Liza A. Bueno
No cotidiano...

Devo engolfar-me em tuas rimas,
Devo-me um perdão...

A luz que me castra a visão
É a mesma que ilumina meu caminho.

Num emaranhado de lições me perco,
Já não me acho,
Já não sou eu mesmo.

Desprendo-me de toda a verdade,
Busco o sonho,
Desprezo toda a estirpe.

Emano da tempestade,
Sou caso insolúvel...

Por mais lépida que pareça minha imagem,
Sou composto de melancolia.
Em mim há muita tristeza,
Sou fortaleza em dor.
Mas isso não me supera a benevolência,
Prossigo rindo-me.
Gargalho ao emancipar-me das convenções.

Estou liberto e assisto impassível as ilusórias hipocrisias
[dos dias úteis.

Herman G. Silvani (Niko)

Crônica literária

Um altar para...

Meu nome... Bem, por enquanto isso não importa. Ou não importa muito. O que faço... Ah, disso tenho de falar! É algo que não pode passar em branco, assim como o final da novela ou a ida rápida ao bar preferido. Para todos os efeitos sou um sedutor. Minha especialidade? Seduzir. Agora mesmo, enquanto escrevo essas linhas, que cá entre nós, são tão ou mais sedutoras que eu, algumas meninas babam sobre mim, os olhos vidrados, tomadas por essa espécie de torpor que somente seres iluminados como eu são capazes de causar. Para dizer a verdade, mereço um altar, mas não um altar qualquer desses que encontram-se nas igrejas destruídas, não, não. Quero um altar de sacrifícios, como dos antigos cultos pagãos. O que quero em oferenda? Suas mentes, suas já diluídas mentes para minha coleçãozinha particular. Desejem-me! Carreguem-me junto ao seio, ao pé do ouvido, vamos de mãos dadas rumo a um entorpecimento maior.
Sou um profissional. Penetrar em seus tolos corações não é tarefa para principiantes. Por isso me transmuto, altero formas, cores, tamanhos. Sou o mesmo e nunca o mesmo. A música que sai dos meus lábios para seus torpes ouvidos encanta. Naufragaria navios se forças para tanto tivesse. Mas tenho cá uma carga de modéstia. Basta naufragar seus cérebros no poderoso absinto de meu cristal líquido. Estou cada vez mais pequeno, notaram? Mas esse detalhe, de tão pequeno, não lhes passa despercebido. Faz parte do meu show. A multiplicidade de minhas funções aumentou na mesma proporção em que eu diminuí. Convenhamos, sou ou não sou irresistível? Gosto de meninos e meninas, estou em todas as baladas descoladas, me carregam a tira colo, sou idolatrado, invejado, cultuado... Ufa!
Canonizar o Papa? Madre Tereza de Calcutá? Ora, convenhamos! Existe alguém hoje com tamanha capacidade de curar como eu? Não estou falando de cânceres, carcicomas, hemorróidas, conjuntivite, gastrite, bursite, não! Isso é coisa para charlatões de quinta categoria. Meu negócio é impedir que vocês pensem. Mas não creiam que estou sozinho nessa empreitada. Também tenho meus apóstolos. Chamam-se: televisão, jornalão, internet’s, o Paulo Coelho, e alguns escritores chapecoenses, mas esses eu descartei, queriam competir comigo, vê se pode? Com o novo deus? O que traz a mensagem de uma nova era.
Curvai-vos pois, servos engalanados da ignorância, que hinos soem de suas pútridas bocas, e que depois deles, apenas um nome se ouça: o meu... ou de meus pseudônimos: Nokia, Motorola... Mas se me chamarem celular, eu atendo.

A. Diógenes Gluzezak

terça-feira, 19 de junho de 2007

Um conto...

ABEL E CAIM
E O REBANHO
DO MAL



Há muito tempo, numa terra de sol escaldante, onde as primeiras crias terrestres edificaram-se nas cálidas montanhas, vivia Abel na plenitude de sua juventude. O rapaz era de descendência divina, linhagem de Javé, o soberano e vingativo Deus das férteis terras que formam o ocidente e o oriente.
Naquele tempo, onde o remoto era contemporâneo, o arcaico era novidade, Abel foi presentead
o com um rebanho de carneiros celestiais. Daquele rebanho Abel tiraria o alimento diário; seria sócio do grande Deus: ofertaria uma quantia razoável de tempos em tempos, em cumprimento do contrato angélico firmado entre criador e criatura.
Abel deliciava-se com a vivência terrena. Tudo era promissor para o jovem criador de carneiros; a terra estava isenta de todo e qualquer mal.
Próximo de Abel vivia outro jovem, um bravo trabalhador chamado Caim. Todavia, Caim não lidava com carneiros, pois acreditava que ainda lhe faltava o discernimento para “conduzir um rebanho”. Vivia de suas precárias colheitas de legumes e verduras; o brasido da terra no fulgurante sol de uma única estação, e a praga devoradora dos carneiros de Abel, não deixavam sua lavoura tornar-se promissora. Andava ele no sacolejo do esbravejamento no reponte do maldito rebanho: o que era divino para um, tornava-se infernal a outro.
O festejo de Abel era a magoa de Caim.
Sempre que Abel amolava uma de suas fartas ovelhas e oferecia a Javé, em gratidão ao bem recebido, Caim esbravejava em ira reivindicando seu suor e suas lágrimas, as quais engordavam o rebanho de seu conterrâneo.
- Com meu trabalho sacio a fome d’aquele que não me vê. Estou farto de plantar o alimento que faz crescer o rebanho e engrandecer a minha miséria.
No alto de uma montanha Caim sentou e chorou.
Nenhum deus o acolheu.
Suas lágrimas umedeciam a terra seca e eram suas únicas companheiras.
Ruído pela fome semeou outra vez.
Regou a terra com lamento e esperança de tudo ser diferente; tinha no forte punho a energia que germinaria a semente e traria o fruto de sua vida; seus olhos acariciavam o broto que surgia entre os torrões e formavam caule e folhas: a alegria voltava a seu sereno rosto. Em alguns momentos Caim ousava até mesmo sorrir.
A semente se fez fruto.
No dia em que Caim ganhava o rumo de sua lavoura, a cena se repetia: o rebanho demoníaco devorava o fruto de seu trabalho; sua plantação em pouco tempo se tornara extinta. Caim perdeu a força e tombou de joelhos ao chão. Implorou a Javé que revertesse o mal que acabara de haver; pediu entre lágrimas e urros o alimento da vida; orou ao Senhor em forma de clemência: de nada lhe foi útil. Não teve nem mesmo a energia de afugentar os malditos carneiros: parou e apenas contemplou o acontecido.
Refletiu então o ocorrido e tirou a lição necessária ao acertar de contas.
Procurou Abel para relatar o desastre que o assolava desde sempre.
- Deves olhar para o que sou, – disse Caim para Abel – minhas lágrimas e meu suor deram o peso em seu rebanho, e, o pior de tudo, diante de teus olhos.
- Essa é a vontade divina – retrucou Abel.
- Será também à vontade de Deus que minha lavoura seja regada com teu sangue; que as sementes que nela eu semear, floresçam com sua alma; que o fertilizante seja o teu corpo e o teu ar de trapaça seja a energia que a fortalecerá.
Dito isso, Caim estraçalhou Abel sobre seu novo e promissor canteiro.
Um sorriso definitivo tomou conta de sua face ao ver a terra que tanto amava coberta pelo precioso liquido vermelho da vida; essa seria uma colheita e tanto; nada mais estava entre ele e seu labor: viveria agora apenas de seu engenho, sem ninguém mais para atravancar seu caminho.
Javé, primeiramente irou-se com tal ato.
Indagou Caim acera de Abel, ao que ouviu:
- Abel é parte integrante da terra. É a energia que fará crescer e multiplicar tudo o que há sobre ela; Abel voltou de onde seu pai saiu, portanto, do pó divino onde se faz o regresso a todo homem.
Javé pasmou-se ao ver tanto engenho em uma pequena criatura.
Decidiu não liquidá-lo; mais ainda, resolveu dar a ele, pela sua bravura e determinação, toda descendência humana. Seria ele, segundo a vontade divina, o elo que ligaria Deus a toda humanidade. Caim seria, desde aquele instante, o principal personagem da existência humana; garra, força de vontade, engenho e arte, seriam coisas instrutivas que Caim legaria as gerações futuras.
Como não houvesse outro jeito, Caim se impôs na terra e reivindicou a adoração divina.
Sua reivindicação considerou a seguinte questão:
- Não devo correr o risco de ser assassinado por nada que habite a terra.
O Senhor, baixando a guarda celestial, concedeu então a Caim um sinal em seu corpo:
- Qualquer que seja que atentar contra ti meu filho sofrerás as iras divinas, e serás aniquilado diante de meu trono.
O pacto fora feito.Caim tinha algo de angélico ao andar nas cálidas montanhas do que hoje chamamos de Oriente Médio.

(Marcio S.)